INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE - DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE
CURSO DE PSICANÁLISE
Seminário – “O narcisismo – A constituição do eu”
Coordenador – Mario Pablo Fuks
Patricia Bader dos Santos
Novembro de 2010
Reflexões cotidianas a partir da psicanálise
São Paulo, 04 de novembro de 2010, sexta-feira, 23h55m. Acabei de ver o filme As melhores coisas do mundo, filme nacional dirigido por Laís Bodanzky. Muito bom! Pela simplicidade, pela aproximação com as questões cotidianas, pelos mesmos modos de enfrentamento dos conflitos que vejo diariamente na clínica, nas instituições, nas relações próximas. Em algum momento do filme comecei a pensar na escrita necessária para concluir o ano de formação do meu curso de psicanálise. Tentei retomar o momento da associação; talvez quando a mãe amargurada com traje de durona diga para o filho adolescente, que tenta de forma reflexiva lidar com os paradoxos da vida, que há uma questão ética a ser cumprida! Perguntei: a ética deve ser cumprida como uma recomendação do ministério da saúde? Do que falamos quando nos deparamos com essa palavra?
De imediato penso que poderia traçar dois caminhos – claro que há tantos outros – para chegar a algum lugar. O mais tradicional seria buscar nas prateleiras, escritos sobre o tema, lê-los e articulá-los. O outro – que apresento a vocês como proposta de monografia – escrever um texto em formato de diário para pensar de que forma e por onde o aprendizado da psicanálise se efetua a partir do dia-a-dia. Sejam bem-vindos!
Hoje tive um dia semi-puxado. Gripada e com muito sono saí cedo de casa para enfrentar uma seqüência de atendimentos/supervisão/aula/atendimentos. Meu primeiro paciente desmarcou através de um torpedo no celular – imprevisto no trabalho, mas já confirmou a consulta da próxima semana. Curioso que essa seria uma sessão extra, solicitada pelo próprio para repor a falta em conseqüência do feriado. Parto então para uma supervisão que coordeno num dos cursos oferecidos no hospital intitulado Psicanálise no Hospital: Teoria e Prática. Uma das colegas rapidamente toma a palavra e nos conta o caso de um rapaz que havia dado entrada no pronto-socorro vítima de perfuração por arma de fogo. O enredo: o jovem, saindo do trabalho com um amigo, estaciona para comprar cigarros e testemunham uma chacina. Um dos atiradores, ao perceber a presença das testemunhas, dispara contra eles. A bala atinge seu abdômen. Desmaiado é levado para o hospital mais próximo em estado de urgência, submetido à intervenção cirúrgica ganha uma prótese externa de intestino. A família decide transferi-lo para outro hospital e é assim que ele chega até nós. Por solicitação da equipe – protocolo institucional – vítimas de violência recebem a visita da psicologia. Ele estava com a mãe, calmo e confiante com o tratamento e recuperação, conta o ocorrido e imediatamente atribui uma proposição divina para o fato: “Nada acontece por acaso. Isso uniu novamente nossa família!”.
Ao simples questionamento da psicóloga sobre as razões divinas para o fato, o rapaz conta rapidamente seu romance familiar – ou ao menos aquele que lhe ocorreu para articular com a situação. O romance: filho do meio de três, mora só com a mãe. O irmão mais velho – usuário de drogas, infrator de pequenos delitos – transita eventualmente pela casa; a irmã casada mora com seu marido e filhos e não conversa com a mãe. O pai saiu de casa quando ele tinha três anos e desde então o contado foi muito escasso, sem clareza dos motivos da separação. Desde então ele assumiu o lugar de companheiro da mãe. Moço trabalhador, afirma contribuir para a reintegração familiar. Noivo, com casamento marcado para daqui alguns meses, terá que adiar seus planos em decorrência do acidente. Em relação à hospitalização apresenta-se fragilizado, os médicos não descobriam a razão da febre, os exames de imagem não respondiam as perguntas, seria necessária outra investigação cirúrgica.
O propósito divino dava conta em responder a primeira cena, não o resto. Contido na sua dor e choro, não queria preocupar a mãe. A equipe estava preocupada com a resignação do paciente, uma vez que mesmo estando com aparência de dor e desconforto, dizia estar tudo bem.
Pausa para explicações.
Infelizmente não raramente encontramos situações como essa no hospital. Para os colegas que não sabem, farei uma pequena apresentação do trabalho que realizo na instituição e da compreensão que temos da função da psicologia. Existimos ali há 12 anos. Os primeiros trabalhados somente na maternidade, atendendo famílias de bebês encaminhados para a UTI Neonatal; outras famílias cujos bebês embora não necessitassem de cuidados intensivos apresentavam algum comprometimento (síndromes, mal-formações); mulheres com dificuldades em oferecer os primeiros cuidados aos seus filhos (as supostas depressões pós-parto); gestantes cujas gravidezes apresentavam alguma problemática e necessitavam de internação e situações de bebês natimortos ou óbito fetais, essas ultimas situando-se na ordem da urgência do pronto atendimento. Embora, no mais das vezes, todas as situações mobilizem para os sujeitos envolvidos (pacientes, familiares e equipe) uma carga afetiva grande, as inesperadas, do meu ponto de vista, encabeçam o pódio.
Tivemos então a oportunidade em expandir o serviço para o hospital geral. Aqui, organizamos o serviço a partir dos setores hospitalares, fugindo da psicologia das especialidades; pela simples razão que até aqui, nos meus estudos, não encontrei nenhuma teoria que justificasse a organização psíquica a partir do discurso médico. Sendo assim, atendemos: na UTI-A (unidade de terapia intensiva adulto), nas semi- UTIs, no centro diagnóstico (leitos de internação para pacientes que estão sob investigação de um quadro), no hospital geral (leitos destinados a pacientes que sofreram alguma intervenção cirúrgica e/ou estão em tratamento por alguma patologia) e no consagrado P.S (pronto-socorro).
A dinâmica do pronto-socorro tem uma característica peculiar. Por se tratar de uma instituição privada, que atende quase que na sua totalidade pacientes de convênio, funciona como palco de dois fenômenos atuais: o primeiro é o negócio da China que a medicina virou, pessoas utilizando muitas vezes o pronto socorro como loja de conveniência para dar conta da burocracia que essas grandes corporações nos impõem. Em outras palavras: é muito mais fácil passar no P.S para dar uma olhadinha na dor das costas, do que marcar um ortopedista, depois agendar os exames, depois agendar o retorno, etc. O segundo é a epidêmica paranóia que as pessoas vivem em relação as suas manifestações físicas como sinal do mortífero. Tudo é muito grave e sua evolução muito rápida. Exige investigação refinada e instantânea. Vocês podem imaginar o grau de exigência que muitas vezes as pessoas chegam ao P.S?
Em relação à primeira resta-me a indignação. Uma das minhas leituras do último semestre foi a Estratégia da Lagartixa do médico Dário Vianna Birolini, descontraído, o autor num ensaio com traços autobiográficos, conta a dura tarefa do médico desde a entrada na faculdade até o mercado de trabalho. Fala da mercantilização que virou a medicina, da função dos auditores como mediadores entre interesses dos prestadores de um lado e dos donos dos planos de saúde do outro e dos efeitos dessa lógica na assistência ao usuário. Ele aponta para três tipos de prestadores – aqueles que recebem os pacientes no PS, por exemplo – os incompetentes, os perdulários e os desonestos. Avalia os perdulários como profissionais que muitas vezes abusam da tecnologia, realizando cirurgias dispensáveis, exames excessivos, etc. (Prometo tentar articular esse ponto com o trabalho de um psicanalista no hospital e dos efeitos psíquicos nos sujeitos). Também discorre sobre os desonestos contando o caso de auditores, que ao serem chamados para avaliar um hospital, perceberam que as biópsias das cirurgias de apêndices extirpados eram normais em 70% dos casos. Decidiram então pagar somente os casos cujo resultado na análise anatomopatológico, confirmasse o diagnóstico da apendicite. Pasmem, os índices caíram de 70 para 15%. Quanto aos incompetentes... Recomendo a leitura do livro. Divertidíssimo!
Em relação à segunda, minha conversa é com outro(s) autor (es). Tomando o verbete Trauma e traumatismo psíquico no Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis, os autores definem em negrito, como sendo acontecimentos da vida do sujeito, definidos pela intensidade e pela incapacidade em que se encontra o sujeito para reagir de forma adequada ao excesso e, pelo transtorno e efeitos patogênicos duradouros na organização psíquica. Pensando em termos econômicos refere que o excesso de energia foi intolerante à capacidade psíquica de controle do sujeito. Tomam o uso da medicina para compreender o trauma – ferida em ruptura, que pode ocorrer de forma exógena ou endógena – e transpõe para o campo psíquico atribuindo três significações: choque violento, ruptura e efeitos sobre a organização.
Acrescentam que o excesso pode ocorrer de uma só vez, ou a partir de um acúmulo de excitações que ameaçariam o principio da constância. Como se os afluentes de um rio transbordassem provocando enchentes que atingiriam a população ribeirinha. A primeira coisa a se fazer é tentar restabelecer a ordem do curso do rio, desobstruindo suas passagens. No entanto, por vezes a tentativa é de salvar os bens mais preciosos, não raro se colocando novamente em risco.
No decorrer da construção da obra, Freud atribui ao trauma um valor constitutivo da organização psíquica do sujeito, mas não deixa de considerar a suscetibilidade de cada um. Segundo os autores, não é possível falar em trauma – aquilo que permanece como um estranho ao sujeito – sem considerar as condições objetivas presentes. Enumera: as condições do acontecimento, as condições psicológicas do sujeito, as circunstâncias sociais e, sobretudo o conflito psíquico que impede que a experiência seja integrada a personalidade do sujeito, dialogando com suas defesas.
Aponta que o valor traumático da cena se dá pela rememoração de uma cena primária (ou de um traço associativo). A lembrança só se tornaria patogênica a posteriori, à medida que provocaria um afluxo de excitação interna. Como se o acontecimento exógeno exercesse uma força de atração – ou vice-versa – a traços de memória, reminiscência do passado. Tal construção aponta para a construção fantasística do sujeito e das fixações nas diversas fases libidinais. Esquematizam a origem da neurose pela disposição por fixação da libido somada ao acontecimento acidental traumático ambos sustentados pela constituição sexual somado a acontecimentos infantis.
O trauma ganha então valor secundário. Como nem tudo são flores as chamadas neuroses de guerra ou neuroses traumáticas ganham destaque na compreensão do trauma. Em Além do principio do prazer, aponta para um excesso de energia que, para ser descarregada precisa antes de tudo ser ligado ao aparelho psíquico. Essa lógica esta fora do principio do prazer – que tende a reduzir o grau de excitação a patamares suportáveis; esta além do princípio do prazer. A repetição dos sonhos traumáticos aponta para isso, como se o sujeito precisasse dominá-lo à custa de muita energia e muito trabalho de ligação. Lembra do transbordamento do rio?! Às vezes é necessário construir novos diques, afluentes, redefinir o fluxo, etc. Provavelmente qualquer garoa, ou mesmo um cheiro de chuva, ou talvez a simples lembrança do fato, por um tempo, provocarão reações similares, como um sinal ao perigo. A tal conhecida angústia. Pobre ego, vulnerável as lembranças internas e aos acontecimentos externos.
Nossa, que volta! Retomemos o caso do jovem baleado. O primeiro comentário foi a respeito da urgência com que convocamos um pai nesses momentos. Divino ou não, a necessidade em atribuir um valor/sentido ao acontecimento é tão emergencial quanto estancar o sangramento. Ele o fez. O pai lhe colocou em risco como razão para unir a família. Por que sua vida foi arriscada? Como compreender a lógica econômica entre a vida de um jovem e o restabelecimento do núcleo familiar? Podemos tentar responder pelos efeitos colaterais do ato divino: sua mãe e sua irmã voltarão a conversar, seu irmão foi visitá-lo no hospital prometendo não se colocar mais em risco, seu pai não apareceu e seu casamento foi adiado. Já a relação com a equipe não respondeu a mesma lógica. O médico que o recebeu no segundo hospital, não conseguiu informações com a primeira equipe, tão pouco conseguia compreender – de fora - o que fizeram com o seu intestino. Os sintomas apontavam para uma complicação, a hipótese era uma infecção decorrente de algum vazamento que não foi suturado na primeira cirurgia. O jovem indignado não se conformava com a intervenção, questionava o médico a respeito do seu saber. Achava que o pior já havia passado e que rapidamente voltaria a sua rotina. O propósito tinha sido alcançado. Foi após a segunda cirurgia que veio a notícia do risco de permanência da prótese. Esse rapaz começaria novamente a lidar com os restos resultantes do ato paterno. Sua preocupação constante era com a mãe. Poupava-a de suas queixas, de suas dores, ao mesmo tempo em que exigia sua presença. Por quê? Para que? Às vezes nos parecia um sacrifício de superação diante do outro mais fragilizado que ele mesmo. Como não pensar na reatualização de uma cena anterior! Diante do abandono do pai – ato que lhe põe em risco – e a oportunidade em se colocar como objeto restaurador para a mãe. Agora o objeto em risco de se fazer abandonado, teria a possibilidade em verificar a intensidade do amor do outro, mas não poderia correr o risco – mostrando-se muito fragilizado – de testemunhar o desmoronamento da mãe.
Eu digo que isso é especulação teórica! Mas necessária para a compreensão clínica. A colega, aluna do curso do hospital, teve oportunidade em acompanhar esse jovem até seu processo de alta. O restabelecimento de outras relações afetivas, a mediação nas conversas com a equipe, a possibilidade de pensar um modo de vida a partir do acontecimento foram trabalhados durante os atendimentos.
Outro dia li um artigo intitulado Conhecendo o inconsciente: relato da experiência com o ensino da psicanálise na universidade, com alunos do terceiro ano de graduação em psicologia de Francisco Carlos dos Santos Filho onde ele diz que para conhecer o inconsciente precisamos de dedicação científica, profundidade afetiva e sensibilidade para a experiência inter-humana. De fato a leitura dos textos, a compreensão na supervisão e claro, o percurso pessoal, facilita um bocado nosso ofício diário!
Como já deu pra perceber, criei um caminho intermediário aos propostos inicialmente. Vamos adiante!
Mais um dia de trabalho! Em casa após a organização das atividades domésticas, aproveito um pouco da alienação televisiva. Surge um instante de vontade que não posso desperdiçar. Acabei de assistir a mais um episódio da série Greys Anatomy exibida no cano pago Sony e fico impressionada com a mobilização superficial que a série oferece. Uma mobilização gostosa, com trilha sonora favorável a reflexões, enfrentamentos, novos projetos; pena que a música acaba e com ela todo o processo de identificação. Hoje falamos disso na supervisão. Uma colega trouxe o caso de uma mulher de 50 anos que se submeteu a cirurgia bariátrica. Inicialmente resistente ao contato, foi aos poucos falando do seu descontentamento em relação à cirurgia, as limitações impostas pelo corte, à nova relação com o fracionamento alimentar e principalmente da sua retirada do “grupo dos futuros magros felizes”. Recém operada teve que ser reinternada por desidratação, fraqueza – “efeitos adversos do procedimento” diria o especialista:” algo aconteceu com você, pois da dezena de cirurgias que EU realizei na última semana, essa foi à única que complicou!”. Foi essa frase que desencadeou a discussão em supervisão.
O líder do grupo- médico especialista, do altar, identifica um integrante como o delator, que denúncia a fragilidade de todos. O propósito comum é atingir a magreza sonhada, o ideal muito além da capacidade real do sujeito. A investigação prévia passa pela pesquisa com outros já iniciados e a pergunta sempre direcionada ao sucesso do procedimento. Riscos e malefícios, normalmente são deixados de lado, não pelo desconhecimento, mas sim pela recusa em aceitá-los como possibilidade. Outros técnicos são utilizados para facilitar a ação do líder. Laudos, orientações e autorizações servem há um único fim: atingir o ideal. Operado o corte no real do corpo a trajetória tende a ser isolada. Retornos servem para verificar a eficácia do procedimento, manter o líder no seu posto, convém à estante do líder, como o troféu da copa do mundo. A arena deve estar cheia, mesclando sucessos com potenciais integrantes. Mas a trajetória com obstáculos será assistida pelos auxiliares. Disse a mulher:
“Os olhos e os ouvidos dele estiveram aqui hoje”; referindo-se ao auxiliar médico-representante do líder. E o questionamento proposto por ele inicialmente, não cessa de repetir: ““ Porque comigo? Será que valeu a pena? É possível desfazer?”“.
No Sedes líamos Psicologia das Massas.
Mais um dia...
Como temos ranços de linguagem no mundo psi! Hoje uma aluna da graduação, durante a entrega dos trabalhos finais, devolutivas e afins, criticou o uso abusivo da palavra sintoma. Tenho gastado um tempinho pensando no termo. Passo parte do meu dia em um ambiente em que os sujeitos são definidos pelo seu conjunto de sintomas. Na verdade, há uma diferença conceitual entre sintoma e sinais. Para a medicina sinais são caracterizados pelas alterações orgânicas de uma pessoa, que são percebidas através do exame médico ou medidas em exames complementares. Portanto, deve ser observável pelo outro. Dizem que se trata de uma característica objetiva da doença, como exemplo: a febre, edema (inchaço), coloração da pele, arritmia. Já os sintomas são também alterações do organismo só que relatadas pela própria pessoa, o que implica auto-percepção e a compreensão de um estado de saúde. Somente a pessoa consegue identificá-los, o outro está submetido ao relato do sujeito. Sendo assim trata-se de uma característica subjetiva, pois depende da interpretação de quem refere o sintoma. Como exemplo: a dor.
Para a psicanálise o sintoma tem outro estatuto. Lucia Fuks e Flavio Ferraz introduzem o livro O sintoma e suas faces, dizendo: “O sintoma não revela a verdade da doença orgânica, o que não quer dizer que não revele uma verdade: trata-se da verdade do sujeito do inconsciente”. Acrescentam que a “psicanálise reconhece o sintoma como símbolo mnêmico, como substituto ligado a linguagem (...) faz parte de uma trama de representações às quais se liga e a partir das quais adquire um sentido.” Acrescentam dizendo que: “As representações reativadas do trauma serão primeiramente recalcadas, e no seu lugar surgirá o sintoma segundo seu mecanismo de atualização”.
O sintoma – o dito do sujeito a respeito da sua dor física ou psíquica – serve como material nobre no percurso de uma análise. É através dele que teremos acesso a verdade de cada sujeito.
Paulo Schiller em seu livro A vertigem da imortalidade: segredos e doenças faz um passeio histórico a respeito do termo psicossomática. Inicia seu caminho relembrando as palavras de Hipócrates afirmando que “a cura da parte não é possível sem o tratamento do todo” complementa dizendo que “não se deve fazer nenhuma tentativa de curar o corpo sem a alma e, se desejamos o corpo saudável, devemos começar pela cura da mente; esse é um dos erros mais graves em nossos dias, em que médicos separam a alma do corpo.” Tal afirmação data de 2500 anos atrás! [1]
Continua seu trajeto apresentando Heinroth, clínico geral e psiquiatra alemão que em 1818 criou o termo psicossomática, atribuindo a etiologia de doenças como tuberculose e câncer a processos mentais. Quase um século depois, George Groddeck, médico alemão influenciado pela psicanálise, publica a obra O livro d isso, negando radicalmente a separação entre corpo e alma. Acreditava que as doenças “traduziam fins obscuros que podiam ser desvendados a partir de suas conseqüências.” Relatava que sua experiência clinica demonstrava que boa parte dos casos eram solucionados a partir da elucidação do significado dos sintomas.
A psicossomática passa a ser reconhecida como ramo da medicina oficial a partir do século XX. Nos Estados Unidos incorporou-se ao ensino universitário em 1939. Pacientes cujos quadros clínicos sofrem alterações que não correspondem à terapêutica aplicada são delegados a psicossomática. Alguns casos em que a participação psíquica esta evidente também recebem o carimbo da psicossomática. Na medicina, a especialidade que se ocupa dessas doenças é a psiquiatria. Algumas correntes da psicologia pegam carona nessa especialidade, buscando na tese da “dupla-origem” as razões psíquicas para determinada doença. As psico-especialidades não negam tal afirmação e buscam a partir de referências da medicina tradicional, o reconhecimento de conceitos como normal e patológico na descrição de um inventário emocional associado a cada grupo de doenças.
Aqui reconhecemos um limite para essa afirmação. Dificilmente um sujeito decide de forma deliberada por ficar doente. O surgimento da doença provavelmente encontra sua origem a partir de uma conflitiva entre esferas mentais que não correspondem à razão consciente do sujeito. O adoecimento aponta para algo que escapa ao próprio sujeito.
Enquadrá-lo a um grupo especifico de pacientes, como faz a medicina a respeito dos desdobramentos fisiológicos de cada patologia é um erro. Schiller conclui: “Classificações dessa natureza nos deixa surdos ao que o paciente tem a nos dizer quanto ao seu sofrimento. Na prática clínica essas classificações enganam e alienam. Retiramos do sujeito o que ele tem de seu na relação com a doença quando julgamos deter o saber, quando aglutinamos pacientes por seus diagnósticos.”
A psicanálise surge na tentativa de buscar uma cura para a histeria. Freud dialogava com vários médicos-cientistas que observavam a correlação entre fatores psíquicos, sexuais e comportamentais, mas que não tinham uma teórica lógica e consistente que desse conta dessas observações. A teoria psicanalítica começa seu caminho atribuindo a origem dos sintomas a fatos traumáticos reais. Mais adiante a clinica demonstrou que não necessariamente os fatos concretos estavam ligados a etiologia das neuroses; a fantasia ganha um lugar de destaque na obra e com isso a sustentação do inconsciente na base da constituição da subjetividade.
O avanço da medicina e da sua tecnologia, a compreensão dos processos orgânicos das doenças, não equivale a negar a participação psíquica na gênese de nenhuma doença. Schiller afirma que essa nova configuração abre espaço para pensarmos numa psicossomática diferente daquela que se encarrega dos restos da medicina; uma psicossomática que compreende o corpo recortado pelo psiquismo. Distingue dois grupos de doenças: “as que podem ser atenuadas, modificadas ou curadas pela descoberta de um sentido, de um significado, ou por uma elaboração que identifique uma causa não orgânica e, as que seguem seu curso apesar da identificação de uma associação psíquica”.
Diz que os sintomas são enigmas a serem decifrados. Apelo de um sujeito a ser escutado. Sinais de que algo não vai bem, “fruto da não compreensão de alguma coisa que se repete que causa sofrimento, mas cujo contorno não é nítido”.
Garantir ao sujeito acesso a sua história familiar e a possibilidade de identificar, interpretar e compreender o sentido da doença mostra-se eficaz na clínica. Normalmente trata-se de sintomas que embora incômodos, não acompanham danos físicos graves. Os medicamentos são capazes de atenuar sua manifestação, não sua cura.
Em relação ao segundo grupo, “aqueles que têm origem num silêncio, num segredo, numa carência de representação de um sofrimento na esfera mental”, encontram na medicação a suavização do mal estar à medida que inibe a motivação para a busca de um sentido difícil e oculto. Nesse grupo encontramos as doenças em geral mais graves que causam lesões agressivas e fatais. A identificação de uma causa psíquica não altera a desordem orgânica, o que não exclui a afirmativa de um corpo recortado pelo psiquismo, mas aqui com outra complexidade.
Schiller apresenta duas vinhetas para exemplificar essa afirmação: a primeira do cão de Pavlov - fisiologista russo, aquele que comprovou a existência do psiquismo a partir da matemática carne-salivação, carne-sino-salivação, sino- salivação, lembram? – e a segunda a tragédia do Édipo Rei, que ao tentar fugir do seu destino, cruza com ele da forma mais inesperada. Ambos tinham acesso à trama, mas para cada um deles aquilo nada significava. “Como se o indivíduo não fosse proprietário daquela história, como se a história fosse alheia a ele, como se o ultrapassasse”.
Fenômenos ou transtornos psicossomáticos são os termos utilizados para descrever essa segunda categoria de manifestações de doenças. Inevitavelmente morreremos um dia e compreendo que a pesquisa a cerca desse tema refere-se a situações que subvertem a cronologia do curso da vida, doenças que causam sofrimento desmedido, doenças mutiladoras; situações que a ação da interpretação não opera efeitos.
Jean Guir, psicanalista, dedicou um de seus livros ao tema: A psicossomática na clínica lacaniana. Não sei se a leitura foi feliz para pensar o significado do conceito, pois exige algum conhecimento a cerca da obra lacaniana. Ele recorta trechos da obra que pensam o tema: primeiro que a os fenômenos situam-se fora do registro das estruturas neuróticas e concernem ao real. O fenômeno implica uma lesão e,quando esta lesão é reversível, não se dá de forma instantânea, como a conversão histérica que é possível de ceder imediatamente em função de uma interpretação. Segundo que “parece que nos fenômenos, certos significantes ficam bloqueados e não podem se ligar a outros significantes, entravando, deste modo, o efeito de afânise do sujeito”. Aponta para um certo congelamento do significante no corpo do sujeito, um curto-circuito responsável pelas manifestações lesionais. Acrescenta que são situações que indicam que não haveria uma dialética do sujeito nessas situações, como se certos significantes operassem dentro do domínio da necessidade, como o bebê, que dependente de sua mãe, não teria a priori idéia sobre seu desejo, podendo confundir necessidade e desejo. Como se não houvesse um ancoramento simbólico do sujeito dentro da linguagem. “Parece-nos que se produz um congelamento dos significantes primordiais recebidos dos pais e, assim, estes significantes vem reencontrar no Real um acontecimento que os atualize”.
São significantes que ficam fora da cadeia, a quem diga que se assemelha a uma psicose no corpo.
Quase de forma pedagógica, ele indica um roteiro para as entrevistas preliminares que não devem ser colhidos em blocos, mas de forma progressiva. São “sujeitos que vem a análise em desespero de causa, depois de esgotar todo arsenal médico e para quem as entrevistas preliminares são o começo de um eventual tratamento analítico”.
Recomenda: conhecimento preciso do diagnóstico médico e tratamentos realizados, que darão dicas sobre a localização dos significantes daquela doença; conhecimento a cerca dos nomes das medicações, principalmente se o sujeito pode escolher, como se ele “ingerisse” significantes; propor ao paciente dar uma explicação natural a sua doença, em seguida solicitar ao sujeito que conte o sonho ou lembrança mais antiga, pois outros significantes ligados ao material precedente surgirão; manter-se atento com precisão aos acontecimentos precedentes ao fenômeno, incluindo datas, horários, lugares, nomes, etc.; deve-se considerar a história detalhadamente das gerações anteriores, diz que essa investigação aponta para um suposto segredo funcionado no surgimento do fenômeno. Manter o paciente sentado durante as entrevistas, que podem durar meses, talvez anos. A presença do analista sustenta uma imagem para o paciente. Verificar o surgimento de outros fenômenos e mesmo sintomas corporais ou fóbicos durante a vida do sujeito, eles indicariam o lugar onde o significante aparece unido a um conjunto fisiológico particular.
Enfim, indicações do trabalho do analista a cerca dessas situações. Talvez, com um pouco mais de clareza, apresento um artigo de Miriam Uchitel intitulado Na borda do sintoma apresentado no livro O sintoma e suas faces, onde ela trabalha o conceito de transtorno. Entendo que a apresentação do termo, refere-se à produção de outros autores que pensam em termos de fenômeno. São situações em que o sujeito não consegue processar os excessos de uma experiência simbolicamente, sendo possível sua descarga em ato pelas condutas impulsivas e pelo corpo. Aponta que se trata de sujeitos neuróticos que “embora lidem predominantemente frente à falta com uma lógica orientada pelo principio do prazer, pelo desejo, pelo conflito, pelo recalque produzindo formações sintomáticas compromissadas, podem manifestar sintomas que obedecem à outra lógica, a lógica do trauma. Uma lógica que opera anulando o funcionamento do principio do prazer”. Aponta para a existência de núcleos constitutivos que escapam a possibilidade de tradução via representação e acrescenta que a complexidade do tema exige a compreensão de modulações diferentes para tradução de experiências, que seriam perceptíveis na clinica.
O transtorno invalidaria a estratégia simbólica uma vez que não encontra na cadeia de representações uma que diga da sua dor. Diz que diante da experiência traumática o sujeito poderia: simbolizar o acontecimento, recusar sua percepção ou não inscrevê-lo; tendo as duas últimas possibilidades às manifestações do corpo como representantes.
Na indisponibilidade em traduzir em palavras algo do registro senso-perceptivo e transpor a energia do plano físico para o psíquico, o transtorno fica alheio as cadeias associativas como uma “quase-coisa” que não tem sentido para o sujeito.
De forma mais clara que o autor anterior, a autora aponta que o transtorno reside no umbigo do sintoma, como “um resto refratário às operações simbólicas, aquém do principio do prazer”, acrescenta que o transtorno parece trazer a ausência do recalque, do interdito que nos fala o sintoma. Seria um trauma que provém da “intolerância ou impossibilidade da separação em relação a outro primordial”.
Fala da organização psicótica que se confunde com o corpo do Outro aqui, confirmando a possibilidade desses transtornos-fenômenos como uma psicose corporal: “A função do transtorno é a de mantê-lo preso, ao menos imaginariamente, ao corpo materno.”
Termina o texto pensando na atuação do analista diante esses quadros: “o trabalho acontece mais na repetição do que com a rememoração, mais com a nomeação, do que com a interpretação, mais com as pulsões agressivas do que com as pulsões libidinais de vida, mais com a necessidade do que com o desejo”. Como se o trabalho do analista envolvesse um processo de soldagem de um eu clivado.
O dia-a-dia da clínica tem esses efeitos. Buscamos sustentação para responder a infinidade de indagações que ela nos traz.
Ao final do texto reafirmo a importância que a formação, que a discussão com os pares, que o percurso pessoal tem para exercer com seriedade a trabalho de um analista.
Não fosse isso, talvez eu não estivesse até hoje trabalhando no hospital. Digo aos alunos que a nossa presença garante a escuta de outra língua, que não só a da medicina, a-língua do sujeito.
Pego carona e finalizo minha escrita. Boas férias!
[1] Rodapé para o professor, curiosidades históricas: Em 1857, uma pequena aldeia dos Alpes franceses chamada Morzine, viveu o surto de uma doença estranha: histerodemonopática. Os sintomas acometiam somente as mulheres e começavam normalmente após a relação sexual com os maridos. Elas se tornavam agressivas e os obrigava a sair de casa. Apresentavam dores abdominais, convulsões e alucinações. A população acreditava ser a manifestação do demônio. Os médicos, já positivista não concordavam com a explicação. A etiologia não era importante, mas a descrição e identificação sim. Passaram-se vinte anos para que os casos desaparecessem e durante esse tempo a terapêutica utilizada era: banhos gelados e ação policial com direito a prisões. Fato que denotava a precariedade do saber, o uso do poder e a necessidade de controle dos distúrbios sociais. Moderno, né!? Gerard Wajeman, citado por P. Schiller em A vertigem da imortalidade, p.121. [Digite texto]Página 9